terça-feira, 9 de maio de 2006

O ÔNIBUS

De Aline Martins e Amanda Danyelli (inspirado em texto de Caio Fernando Abreu e Arnaldo Jabor)

(Ônibus lotado. Ele em pé, segurando-se na barra de cima e com uma pasta na mão. Ônibus pára, Ela sobe. Eles viveram um grande amor e não se viam há um ano. Ambos se vêem, mas disfarçam. A aproximação é inevitável).

ELE: Oi.

ELA (fingindo vê-lo apenas nesse instante): Oooooiii! Você por aqui!

ELE: É, você também.

ELA: É, pois é…

ELE: É, né? Ai, ai…

ELA: Calor, né?

ELE (balança a cabeça afirmativamente): E aí?

ELA: E aí o quê?

ELE: E aí, como é que cê tá, que é que tá fazendo…? Só isso!

ELA: Bem, tirando esse ônibus lotado, a minha fome e esse calor… Eu estou ótima. Estou óóótima. Estou trabalhando muito… E você? Fazendo muitos projetos?

ELE: Ãham (pausa. Fala rápido sem jeito de perguntar). Você tá ind prond?

ELA: Quê?

ELE (hesita, mas fala): Você, está indo pra onde agora?

ELA: Eu? Eu vou… Tô indo pra… Eu vou para casa de um amigo meu. Fica há uns três pontos daqui.

ELE: Sei, amigo…

ELA: É, amigo.

ELE: Você tem cigarro?

ELA: Eu tô tentando parar de fumar. E além do mais (apontando para a placa de aviso) é proibido fumar em coletivos.

ELE: É, mas eu queria uma coisa nas mãos agora. (ônibus freia bruscamente e Ele se apóia nela, segurando seu braço).

ELA: Você tem uma coisa nas mãos agora.

ELE: Eu?

ELA: Eu… Camisa nova… Ganhou de quem?

ELE: De você, não lembra? Você me deu no dia daquela festa na casa da Suely (Ônibus começa a trepidar).

ELA: Ah, lembro… lembro muito bem. Não foi nessa festa que você sumiu com aquela loira horrorosa, do cabelo estirado, gorda e cheia de celulite? E aquele sinal no lado do nariz dela que mais parecia um marimbondo?! Você… Você é mesmo um nojento, viu? Como é que você pôde ficar com aquela mulher, aquilo é uma prostituta! Você é um porco, safado, canalha… (fim da trepidação. Ele interrompe-a).

ELE: Xiii, fala baixo! Ó, um lugar. Senta aí!

ELA: Não quero sentar, não. Estou bem em pé.

ELE: Acho que passou seu ponto.

ELA: Eu posso ir ao shopping amanhã.

ELE: Shopping?! E a casa do seu amigo?… Ele existe?!

ELA: Existe, sim. E a gente se dá tão bem… Ele é uma pessoa linda, carinhosa, sensível…

ELE: É viado.

ELA: Que é isso?!

ELE: Então você quer me fazer ciúme. Aliás, como sempre fez, né? E ainda falava em amor.

ELA: E você ainda duvida que eu te ame… que eu te amava? Era amor sim!

ELE: Amor?! Aquilo era uma gosma gelatinosa do E.T que nos prendia feito insetos numa teia de aranha. Por isso, eu acabei com você.

ELA: Por isso, eu acabei com você (pausa). Você tomou alguma coisa!

ELE: O quê?!

ELA: Não sei… Cocaína, morfina, heroína…

ELE: Você sabe que eu tomo mais isso (Pausa. Lentamente, começa a cheirá-la). Tá usando o mesmo perfume… Alfazema.

ELA: Alecrim. Eu acho que me separei de você porque te amava demais (Pausa). E pelas 37 mulheres com quem você me traiu!

ELE: As 37 mulheres me salvaram de você. De você e de toda essa sua atmosfera de alecrim e dendê!

ELA: Mas o que é isso! (Dá um tapa na cara dele).

ELE (Segurando-a pelo braço): Tá pensando que está aonde, hein? Teatrinho, é? Teatrinho, é? Você adora aparecer. Na certa, tá paquerando alguém por aqui. Diz quem é, diz! (Ela beija-o. Pausa). O que isso quer dizer?

ELA: Isso quer dizer que… que… que por três segundos, só por três segundos, hein? Eu senti uma necessidade ridícula de contrair bactérias vindas das suas glândulas salivares. Eu quis te beijar, porra!

ELE: Dá pra baixar o volume? A culpa por tudo isso é sua. Não é da tsunami, do efeito estufa ou do Lula, não. É sua! Por ser tão sádica, complica tudo e acaba me complicando também. Hoje, eu já nem sei mais quem sou. Eu queria me encontrar.

ELA: Lembra quando a gente se chamava de linhas paralelas? E a gente era assim mesmo. Iguais, necessários um ao outro, feito linhas paralelas. Só que elas não se encontram…

ELE: Se encontram no infinito.

ELA: Acho que a gente só vai se encontrar lá.

ELE: Ou num ônibus lotado! (Risos sem graça).

ELA: Pois é…

ELE: É, né? Ai, ai…

ELA: Calor, né? (Ele afirma com a cabeça). Vou descer aqui. A gente se vê (olham-se uma última vez, antes dela descer do ônibus).

ELE (só, no ônibus lotado): Tomara.


Fim